SOCIEDADE DE ASSISTÊNCIA AOS CEGOS
60 ANOS
Ensinando a Ver o Mundo
Blanchard Girão
Páginas: 114-122
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Entre as
rochas altaneiras que desenham a paisagem áspera de Quixadá, nasceu, produziu e baixou
ao seio da terra, um homem de inteligência ímpar. Não diríamos um gênio para não
vulgarizar o elogio merecido ao que fez neste mundo Adolfo Lopes da Costa, que, tal como
Aderaldo, perdeu o sentido de visão ainda muito jovem. O infortúnio não o atirou na
desesperança, nem ao "muro de lamentações" dos vencidos. Pelo contrário.
Parece que, perdida a luz dos olhos, robusteceu a sua capacidade intelectiva, produzindo
nesse período de cegueira, desdobrado entre 1932 e 1997 quando faleceu, obra
extraordinária em diferenciados campos da atividade humana. "Em nossa comunidade, entre tantos homens de valor pessoal, um merece de fato capítulo especial, por sua dignidade, sua valentia diante da desdita que o atingiu em plena juventude, dono de uma capacidade de luta invulgar. Refiro-me a Adolfo Lopes da Costa, que morreu no dia 18 de junho de 1997. De origem humilde, cedo partiu para Fortaleza, onde não pôde desenvolver grandes estudos face à necessidade de prover o sustento e ajudar os pais. Nele despertou precocemente a tendência para a mecânica, procurando engajar-se nas poucas oficinas existentes naquelas primeiras décadas do século anterior. Seu talento nato logo despertou o interesse de quem dele se aproximava. No empenho de conseguir algo melhor, aceitou submeter-se a um estágio nas oficinas da antiga Rede de Viação Cearense, dedicando-se de corpo e alma ao aprendizado. De tal modo que não tardou a ser admitido como funcionário, ganhando a bagatela (sic) de 12 mil réis por mês. Mas aquela passagem pela RVC foi decisiva para ele, porquanto travou conhecimento com o que havia de mais avançado em termos de máquinas a vapor. |
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Desestimulado pelos parcos salários, decidiu, num rasgo de coragem, enfrentar a vida por conta própria, não obstante a precariedade das condições de trabalho na cidade acanhada daqueles tempos remotos. Poucas eram as máquinas para cuidar em Fortaleza".
A VOLTA A QUIXADÁ
Seu renome de bom mecânico chegou aos ouvidos do então vigário de Quixadá, D. Lucas Reuzer, que precisava de alguém para cuidar do seu automóvel, o único da cidade dos monólitos naquela época. Corria o ano de 1926, quando Adolfo voltou à terra natal. Mas, consertado o carro, o Vigário revelou não ter condições de contratá-lo como motorista e mecânico efetivo. Em outras palavras, estava desempregado e tinha que começar a luta. Optou por permanecer em Quixadá. E por sugestão de D. Lucas, instalou uma pequena oficina mecânica, para o que contou com a ajuda de alguns amigos. Ali teria, como teve, todas as oportunidades para demonstrar a exuberante força do seu talento."
O GOLPE DO DESTINO
Trabalhando, tendo sempre
serviços para assegurar-lhe a subsistência, Adolfo considerou que chegara a hora de
assumir a responsabilidade do casamento. Encontrou na jovem quixadaense Luiza o amor e a
companhia para todo o restante da sua existência.
Dois anos apenas depois de casado, eis que um golpe do destino
vem para feri-lo. Uma grave moléstia passou lentamente a consumir-lhe a visão. Como um
mecânico, lidando com motores complicados, iria se comportar com a perda parcial da
vista? Buscou o auxílio da Medicina, de todos os recursos disponíveis então, mas a
doença avançava inapelavelmente. Nada foi possível para evitar a fatalidade. Em 1932,
estava completamente cego, o que poderia parecer um entrave intransponível à sua
atividade profissional.
Dias cruéis, naquele ano marcado por uma das mais sérias secas
do Ceará. Cego, as oficinas vazias de fregueses, um homem qualquer seria dominado pelo
pânico, pelo desespero. Não Adolfo Lopes da Costa, que não era um homem comum, tinha
dentro de si tantos e tão fortes engenhos, que não seria a carência de um dos sentidos
que o faria sucumbir. E Adolfo pôde mostrar, na noite escura que se apossou dele, todo a
imponderável condição que o ser humano guarda em seu âmago para superar os piores
reveses.
"A LUZ QUE SE APAGA"
Edmundo de Castro, um dos nomes mais altos do jornalismo cearense, publicou ainda nos anos sessenta, no jornal "O Povo", excelente reportagem sobre essa personalidade invulgar de Adolfo Lopes. A respeito da cegueira de Adolfo escreve Edmundo:
"O mal foi avançando, sem
pressa, mas depois de cinco anos, apesar das tentativas para debelá-lo, acabou vencendo.
Para Adolfo Lopes da Costa, o Mestre Adolfo, as luzes se apagaram em 1932. Mas ele
tentando reacendê-las, durante quinze anos, até que desistiu de uma vez por todas, não
aceitando, inclusive, submeter-se a tratamento em clínicas do Rio e São Paulo, pois teve
chance para isso.
Não sou propriamente um homem conformado (dizia ele ao
repórter naquela ocasião), mas a essa altura eu já havia superado a fase mais difícil
de minha vida.
Mestre Adolfo se refere à fase em que todos, naquela cidade e
adjacências, passaram a desacreditar no seu trabalho.
Tinha sido até então um bom mecânico ou melhor eletricista,
mas isso antes de ficar completamente cego. Agora, segundo o pensamento geral, ele estava
acabado para o ofício. Ninguém iria confiar a sua máquina, para conserto, ao trabalho
de um homem de cuja competência não havia o que duvidar, mas a verdade é que, tendo
perdido os órgãos da visão, não era o mesmo de outrora, conforme diziam seus antigos
fregueses."
Esta, a terrível realidade com que se deparou Mestre Adolfo,
naquele distante 32 de triste memória. Com quatro filhos pequenos e uma mulher para
sustentar, de pronto afastou a possibilidade de mendigar para sobreviver. Encontrou, no
mais fundo de sua mente e de seu coração, a diretriz para acomodar-se à sua nova
situação. Faltavam-lhe olhos, mas a inteligência permanecia viva, a habilidade para
produzir, com as mãos, usando o tato, uma vasta gama de idéias, de coisas que
fervilhavam na cabeça, acenando-lhe com a capacidade de voltar a trabalhar. Foi daí em
diante que Adolfo Lopes pôde revelar a fantástica dimensão do seu talento.
BRINQUEDOS EM PROFUSÃO
Entre as inquietações que
pululavam em seu cérebro privilegiado, despontou o desejo de inventar e fabricar
brinquedos infantis. O mecânico e eletricista, pelo menos de momento, trocou as
ferramentas e, com paciência e destreza, foi tirando da cabeça os modelos que
transportava, tateando, para a madeira, dando-lhes as mais variadas formas.
Aquele novo trabalho de Mestre Adolfo não demorou a se
popularizar na cidade e daí para os municípios vizinhos. Fabricar brinquedos não se
constituía para ele apenas uma diversão, porém um meio de vida, apurando algum dinheiro
para manter a família.
Concebeu Mestre Adolfo algo ainda mais arrojado: iria construir
uma cidade em miniatura. Tinha ainda gravada na mente a imagem da sua Quixadá, ruas,
praças, monumentos, tudo enfim. E se lançou, com toda a alma, a essa tarefa.
Levou meses, mas criou, positivamente, uma obra-prima. Tão
perfeita que se tornaria grande atração numa feira de amostras em Fortaleza e em outra
na capital paulista.
Com sua engenhosidade, as peças da minicidade se movimentavam,
as luzes da via pública e das casas se acendiam. Simplesmente, uma obra artesanal
primorosa, a par de uma cabal afirmação de domínio da eletromecânica.
Com ela, Mestre Adolfo dava uma demonstração de que a cegueira
não o acabara. Não era um homem vencido. Muito pelo contrário, tornara-se até mesmo
muito mais capaz.
O esforço na consecução da chamada "cidade
fantasma", levou-o à estafa. Dois meses de cama, gravemente enfermo, no entanto
feliz, porque vitorioso, a auto-estima totalmente recuperada.
Reabriu a oficina. Os fregueses começaram a retornar aos poucos.
Aconteceu, todavia, algo especial para que seu prestígio e a confiança fossem
inteiramente retomados.
O MUDO FALOU...
Isto se deu em 1935: Quixadá
possuía um cinema, porém mudo, mesmo depois de vários anos do acoplamento do som à
imagem. O cineminha pertencia à Paróquia, da qual era vigário o Padre Luis Rocha. O
reverendo entendeu de dotar a cidade de um cinema falado. Deslocou-se para o Recife, onde
adquiriu o equipamento. Um técnico da própria empresa fabricante viria para montar a
aparelhagem. Certo dia, o homem chegou com seu sotaque sulista, sua pose de doutor no
assunto. Virou e mexeu, mas o cinema do padre continuou sem falar. Dias e dias consumidos
em tentativas frustradas. A coisa entrara na gozação do povo, que dizia haverem enganado
o querido vigário da cidade, empurrando-lhe um cinema tão mudo quanto o anterior.
Decepcionado e totalmente desacreditado, o tal técnico anoiteceu e não amanheceu. Partiu
deixando o problema sem solução.
Alguém lembrou ao padre Luis que Mestre Adolfo era entendido em
coisas de som, de mecânica, desses instrumentos complicados. Meio descrente, o sacerdote
convidou Adolfo e este, humilde como sempre foi, tocou a trabalhar com as mãos, remexendo
naquelas peças e componentes do equipamento sofisticado para o seu tempo. De repente,
eureka! O mudo falou... Quixadá ganhava, pelas mãos hábeis de um homem cego, o seu
cinema falado. E era desmentida a versão de que santo de casa não faz milagre.
Esse feito reforçou o conceito de que Mestre Adolfo desfrutara
outrora, quando tinha vista. Agora todos propalavam que os olhos do homem não lhe faziam
falta. Ele dominava qualquer problema elétrico ou mecânico pelo milagroso tocar de suas
mãos.
Ninguém mais desacreditou na competência de Cego Adolfo.
Serviços não mais lhe faltaram. A oficina aumentando para receber tantos instrumentos
para conserto. Dezenas de pequenos motores de puxar "caititu", desses bem
conhecidos em sítios e fazendas do sertão, empilhavam-se nos balcões de Mestre Adolfo.
E de lá saíam prontos e acabados para o trabalho.
O MÚSICO
Adolfo Lopes da Costa não
tinha talento apenas para a mecânica, a eletricidade, esses fenômenos físicos que ele
conheceu desde menino. Era dono igualmente de um ouvido aguçado para a música. Marcelino
Queiroz diz categórico que o bandolim gemia, chorava e emocionava ao contato dos seus
dedos ágeis. E aqui vem aquela vontade de apelidá-lo de gênio. Deixamos o termo para os
Einstein e outros desse porte. Adolfo foi apenas um homem de excepcional inteligência,
humilde e vontadoso, que conseguia fazer quase tudo o de que gostava. Música era um
desses prazeres.
Associando o gosto pela música à eletrônica, instalou um
serviço de alto-falantes que se tornaria, por longos anos, o referencial da cidade,
divulgando notícias, convites, pequenos anúncios e uma programação de bom gosto com
predomínio para as canções românticas da chamada "fase de ouro" da Música
Popular Brasileira. A sua irradiadora era possante, cobrindo os principais pontos da
cidade, com som puro, cristalino, arrancado pela competência do seu proprietário e
dirigente.
O Serviço de Alto-Falantes Solon Magalhães homenagem a
uma histórica figura quixadaense, seu grande amigo funcionou durante cinco
décadas sob o comando de Adolfo. Chegou a implantar uma emissora de rádio, mas o canal
foi cassado pela revolução de 64, ninguém sabe bem o porquê.
Como radialista, Adolfo iniciou na carreira muitos jovens hoje
engajados em diversas emissoras de Quixadá e de todo o Estado.
UMA LUZ BRILHA PARA SEMPRE
Falar da vida e da obra dessa
criatura admirável exigiria todo um livro. Vamos abreviar esses traços biográficos,
colhidos através de depoimentos dele a Marcelino Queiroz, Edmundo de Castro e a outros
repórteres que vez por outra o abordavam em sua oficina ou nos estúdios do "Solon
Magalhães".
Já com bastante idade, Mestre Adolfo concebeu a idéia de criar
um símbolo luminoso para sua cidade e o ergueu na grande Pedra do Cruzeiro, que
identifica de longe os que se aproximam do velho Quixadá, antigamente reconhecido pelo
penhasco da "Galinha Choca".
A luz que lhe faltou aos olhos tão precocemente, Adolfo
transferiu para o cruzeiro-símbolo de sua querida terra natal, onde pontifica também o
monumento ao ferreiro, nas proximidades da estação ferroviária, obra de Jacinto de
Sousa, um artista que Adolfo apontava como o maior já nascido em Quixadá.
Na famosa reportagem de Edmundo de Castro, na qual amparamos boa
parte dessas páginas sobre Mestre Adolfo, este talvez antevendo o fim que se aproximava,
disse ao jornalista:
"Eu gostaria muito de ver o cruzeiro iluminado"...
As luzes brilhavam, porém, na
alma desse grande homem, que deixou de seu casamento com D. Luisa Dantas Lopes nada menos
de 14 filhos.
Foi mesmo um homem iluminado.
DOIS GÊNIOS SE DEFRONTAM
O mais famoso cego do Ceará,
poeta violeiro, cantador genial, invicto em mil duelos com os mais temíveis
adversários do Nordeste, Aderaldo, em certa fase de sua carreira, valia-se de uma sessão
cinematográfica para atrair mais público às suas cantorias.
Adhemar de Barros, o astuto governador de São Paulo, sempre à
procura de maior popularidade, levou Cego Aderaldo a seu Estado, onde lhe doou uma
aparelhagem para exibição de filmes.
Da manutenção desses aparelhos cuidava outro cego simplesmente
invulgar, o Adolfo, do "Serviço de Alto-Falantes Solon Magalhães", de
Quixadá. Homem dos sete instrumentos, poeta, mecânico, doutor sem anel, mas entendendo
tudo de eletricidade e de eletrônica, Adolfo tinha consciência da importância do seu
trabalho para o bom andamento dos espetáculos de Aderaldo. Este, ao que consta, gostava
de alardear o seu prestígio com as figuras de relevo da política brasileira, como o
citado Adhemar de Barros. Essa fanfarrice desagradava o Adolfo, que não poupava crítica
ao companheiro de cegueira, de gênio e seu cliente.
Os dois se atritaram, romperam relações. Aderaldo, talvez por
conta disso, optou por muitas andanças pelos sertões do Nordeste, não se fixando por
mais tempo em Quixadá, onde imperava, através das bocarras do seu poderoso serviço de
alto-falantes, o extraordinário Cego Adolfo.
Ambos, sem dúvida, são dois expoentes da comunidade cega do
Ceará, dois talentos exuberantes, positivando em suas respectivas e múltiplas áreas de
ação que não é a ausência do sentido da visão que amesquinha e imobiliza o ser
humano.
Como Sinfrônio, como Esmeraldino, como tantos e tantos outros
deficientes visuais, Adolfo e Aderaldo inspiraram, com certeza, os que se devotaram à
causa do cego em nossa terra.
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