Jornal DIÁRIO DO NORDESTE
Segunda-feira - 29-11-2004
Fortaleza - Ceará - Brasil
http://www.diariodonordeste.com.br
OPINIÃO
Cegos marcam cena nordestina
Existe, ou diria melhor,
existia uma identificação entre o cego e o violeiro. Personagens marcantes da cena
nordestina, passaram a integrar o folclore desta região, gerando lendas sobre o talento
que demonstravam em afamadas cantorias nos terreiros das fazendas ou nos portões das
feiras sertanejas. Haveria, assim, uma tendência do homem privado da visão ao nascer, ou
perdendo-a mesmo depois de conhecer a luz do mundo, para a poesia e para música? É uma
pergunta a suscitar discussões, não se conhecesse, como particularmente conheço, a
multiplicidade de talentos das pessoas privadas do sentido da visão. |
|
Seria exercício por certo enfadonho ir
enumerando exemplos num espaço de jornal, evitando-se, pois, cansar o leitor. Neste
rápido trabalho, vou fixar-me em três expoentes da comunidade cega do Ceará, um deles
de renome nacional, outros dois dotados de impressionante inteligência e não menor
habilidade, tendo deixado um marco extraordinário de realizações, sem alcançar,
contudo, a notoriedade e glória à altura de sua grandeza.
Cego Aderaldo é o primeiro nome que me acode à memória. Sem
dúvida, uma figura aureolada pela fama Brasil afora, alcançada em razão de sua
manifesta inspiração de poeta popular e de exímio instrumentista. Sobre Aderaldo
Ferreira de Araújo, nascido no Crato, mas radicado por muitos anos em Quixadá, já se
ocuparam muitos estudiosos da cultura cearense, com destaque para o folclorista Leonardo
Mota. Direi apenas que Aderaldo fez, de fato, por merecer esse prestígio nacional, obtido
em múltiplas pelejas e desafios com outros cerebrais cantadores, cegos ou não,
empolgando auditórios refinados ou o vibrante público sertanejo, maior aficcionado das
cantorias de viola.
Aderaldo cegou já adulto, quanto trabalhava numa caldeira, em
Quixadá, e, segundo sua própria confissão, sofreu como que um choque térmico ao sair
do calor escaldante para sorver um copo dágua. A partir daquele momento crucial da
existência, decidiu encarar a fatalidade com o valor que se mantinha adormecido em sua
mente. Depressa aprendeu a tocar cavaquinho, violino, viola e rabeca, instrumentos com os
quais passou a ganhar o sustento, versejando a troco de moedas oferecidas pelos
circundantes que o ouviam e aplaudiam. A rapidez de seu raciocínio, a inesgotável fonte
de humor, a erudição sobre os mais diversos temas, em especial de História, conseguida
pela leitura de livros que outros lhe faziam, foram se cristalizando ao longo do tempo
para fazê-lo um imbatível nos desafios de viola, a princípio em Quixadá e depois,
famoso, pelo Ceará todo, pelo Nordeste e, já idoso, em grandes centros do país.
Cantou e encantou o então governador de São Paulo, Adhemar de
Barros, que lhe deu de presente um projetor cinematográfico, com o qual percorreu o
Interior nordestino, exibindo filmes mudos, mas que ele narrava, às vezes em versos, a
partir do conhecimento prévio da história contida na película.
Há registro de um encontro seu com o famoso cantor Sílvio
Caldas, no Rio de Janeiro, quando fez um dueto com o célebre poeta pernambucano, mas
radicado em Fortaleza, Rogaciano Leite.
Aderaldo foi, sem favor, uma prova eloqüente da força criativa
do homem destituído da visão, mas que soube encarar, sem desfalecimentos e sem
complexos, a realidade que o destino lhe reservou. Morreu aos 89 anos de idade.
Outra personalidade invulgar, com rasgos de verdadeira
genialidade, foi José Esmeraldino de Vasconcelos, que chegou a Fortaleza, vindo de
Sobral, seu berço, a fim de conseguir aqui uma tentativa compatível com sua bagagem
cultural.
Antes de tudo, era um homem dotado de formidável sentido de
musicalidade. Virtuose de piano, dominava muito bem o violino, o bandolim, o violão, a
gaita, o realejo, a flauta, o xilofone e o piano de garrafas, em que era um mestre.
Através do saudoso Dr. Hélio Góes, que o atendeu em seu consultório, Esmeraldino
aproximou-se da então Casa dos Cegos, no Alagadiço, depois Instituto dos Cegos
(Sociedade de Assistência aos Cegos), onde passou a residir em companhia de sua esposa.
Ali, em pouco tempo, tornou-se figura de proa, assumindo importantes funções como
educador, ensinando conhecimentos generalizados a crianças e adultos.
Poeta e contista, José Esmeraldino conquistou prêmios
literários significativos, deixando algumas obras publicadas, hoje editadas em Braile. A
pedido de Hélio Góes, compôs o hino oficial do Instituto dos Cegos. Seu talento se
evidenciava em outros planos, como, por exemplo, na aerodinâmica, porquanto construiu um
pequeno avião planador, cujas acrobacias arrancavam frenéticos aplausos do público
quando de sua apresentação em festejos no Instituto.
|
O meu terceiro personagem neste desfile é o quixadaense Adolfo Lopes da Costa que, como Aderaldo, não nasceu cego, perdendo a visão já adulto, embora muito jovem. Adolfo Mestre Adolfo foi dos homens de maior
inteligência e habilidade que jamais conheci. Dominava como poucos a mecânica, a cujo
conhecimento se entregou, bem moço, quando trabalhou na antiga Rede de Viação Cearense.
Como mecânico, mesmo depois de cegar, operava verdadeiros milagres no reparo de toda
sorte de motores, bem assim na produção de peças na sua oficina montada para o fabrico
de brinquedos infantis, seu meio de vida básico. |
Ele também chegou a montar um aparelho de
rádio tão potente que tinha alcance suficiente para captar até a Rosa de
Tóquio, emissora do Japão, durante a Segunda Guerra Mundial. Meu Pai, Francisco
Pessoa, financiou a compra dos equipamentos para montar o aparelho.
Alma musical de extrema sensibilidade, fundou e manteve, anos
seguidos, na sua Quixadá, o Serviço de Altos-Falantes Solon Magalhães, através do qual
enchia a cidade com as melodias mais em evidência, selecionadas e apresentadas por ele
próprio. Posteriormente, essa amplificadora, que cobria grande parte da cidade de
Quixadá, transformou-se em emissora de rádio, que viria a ser fechada em 1964, por
razões que ignoro.
Adolfo Lopes da Costa, Esmeraldino Vasconcelos e Aderaldo
Ferreira de Araújo compõem um trio de cegos iluminados da vasta e brilhante comunidade
de deficientes visuais do Ceará.
Valdo Pessoa |
|
Volta página principal | Maiores informações: |
Volta página anterior | envie Mail para Webmaster da SAC |