Jornal DIÁRIO DO NORDESTE
Sexta-feira - 24-06-2005
Fortaleza - Ceará - Brasil
http://www.diariodonordeste.com.br
CINE CEARÁ
Visão da fantasia
|
Dos mistérios do universo/ A luz e a escuridão/ Fazem par, verso e reverso/ Nos percursos da visão./ A luz que corta qual faca/ afiada e bem precisa/ E a escuridão, faca cega / Que só apalpa e alisa, cantou Gilberto Gil às três irmãs, Maria, Regina e Francisca da Conceição Barbosa, personagens do documentário A pessoa é para o que nasce, do carioca Roberto Berliner. Na tela do cinema Dragão do Mar, o cotidiano das paraibanas tocadoras de ganzá. Na platéia, espectadores que compartilham com Maroca, Poroca e Indaiá (apelidos carinhosos das três irmãs) a impossibilidade de ver, pelo menos, no sentido que compreendemos. O cinema, adição de imagem em movimento e som, é recebido como um portão à fantasia pelos deficientes visuais |
A pessoa é para o que nasce foi o ganhador de Melhor Filme na edição deste ano do Cine Ceará. O diretor Roberto Berliner acompanha as Ceguinhas da Paraíba, como ficaram conhecidas, desde 1997, a partir da realização do programa de TV, Som Helô Sales, professora de teatro do Instituto: Eles se superam a todo momento da rua, depois de um curta-metragem e, agora, de um longa.
Quarta-feira passada, o Cine Dragão do Mar e o Instituto Dr. Hélio Góes Ferreira levaram à sala de cinema sete deficientes visuais. A diretora Josélia Almeida e outros professores da organização acompanharam a sessão. Estes transformaram-se em narradores, apontando alguns detalhes da história que não podiam ser captados pela audição. |
|
Durante a sessão, reações durante toda a
narrativa, risos, brincadeiras e algumas decepções. O melhor foram os comentário.
A Carlizeth perguntou como eram as irmãs. Eu disse que elas eram morenas. Só não sei
que idéia da cor morena ela tem, já que tem cegueira congênita, explicou a
diretora. Carlizeth, a mascote da turma, parecia a mais empolgada. Era para tanto. Afinal,
foi a primeira vez que ela entrou em uma sala de cinema. Na cena, quando Maroca, a irmã
mais velha, insistia em receber uma foto do filho do diretor Berliner, Carlizeth se
perguntava: Para que ela quer uma foto?.
Emocionada ficou Dona Edite, que não completou nem um da perda
da sua visão. Sinto saudades dos filmes que eu vi, mas hoje já estou mais
conformada, assume ela. A ida ao cinema também foi a primeira, após a deficiência
visual. Mas assisto sempre televisão. Inclusive aquela novela das oito, que passa
às nove horas, que tem aquele cego interpretado pelo Marcos Frota.
Era de Jatobá que Edite falava, da novela América,
de Glória Perez. O personagem, sempre em alto astral, é um atleta de 40 anos, cego desde
os 20. A pequena Bruna Marquezine também vive uma deficiente visual, a personagem Flor.
As cantoras de coco de embolada Maroca, Poroca e Indaiá também ilustraram a ficção na
telinha, em participação especial.
Alto astral também acompanha Dona Francisca. No final do filme,
quando tomou conhecimento por sua narradora que as três irmãs tomavam banho de mar sem
roupa, Francisca exclamou ao colega: Seu Tarcísio, feche os olhos. Risos não
foram poupados.
Dona Francisca está sem enxergar há oito anos. Agora, com seus
78, o prazer maior é a dança. Eu não fico encostada em um canto, não. Eu faço.
Lavo minhas roupas e ainda faço um pouco de crochê, mas o que eu gosto mesmo é de
dançar. No instituto? Lá, em casa ou em qualquer lugar. Às vezes, fico
dançando sozinha em casa. Só tenho vergonha que um dos meus filhos veja e pense que eu
não estou regulando bem, comenta D. Francisca e conclui: nunca deixo a
solidão tomar conta de mim.
Ruthilene Sousa, coordenadora da escola e uma das narradoras
durante a sessão, comenta que é bom indicar alguns momentos que os deficientes visuais
não conseguiram captar. Como na hora, que Maroca vai ao cemitério rezar pelo seu
marido. Existem filmes descritivos que já fazem essa função do narrador, explica
Ruth. A coordenadora está falando de filmes com áudio descritivo, especial
para pessoas com deficiência visual. No Brasil, o primeiro DVD lançado com este sistema
foi Irmãos de Fé, de Moacyr Góes.
Consenso entre os espectadores da sessão especial foi o triste
retorno das irmãs, depois do período de fama no festival de percussão PercPan, a pedir
dinheiro nas ruas. Cada um deles, tem uma história para contar da impressão de pessoas
que os associavam a pedintes, pelo fato de serem também deficientes visuais.
Helô Sales, promotora de eventos e professora de teatro do
Instituto também acompanhou a sessão especial. Eles criam seus personagens. Entram
em um mundo de fantasias. Não têm a visão, mas os outros sentidos são
aguçadíssimos, comenta. Diariamente, Sales trabalha com seus alunos questões da
arte: dança, teatro, música e cinema dentro do projeto de cultura Tudo a
Ver. Quando entrei para o Instituto minha visão em relação ao cego mudou.
Todo mundo enfrenta limites todos os dias e muitas vezes não conseguimos superar. Eles se
superam a todo momento, completa a professora.
SERVIÇO: "A pessoa é para o que nasce", de Roberto
Berliner. Cinema Dragão do Mar, às 16h e 20h. Levando 1kg de alimento é garantida a
meia no ingresso. No Domingo, para quem levar o cupom do jornal Diário do Nordeste a
acompanhante entra de graça.
Volta página principal | Maiores informações: |
Volta página anterior | envie Mail para Webmaster da SAC |