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Jornal O POVO
Segunda-feira - 25-09-2000

Fortaleza - Ceará - Brasil
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Os olhos dos outros


 Ana Mary C. Cavalcante
 Da editoria do Vida & Arte

Deficientes visuais têm um apoio importante na caminhada do dia a dia: parentes que se tornam guias. Mais que irmãos, amigos. E, algumas vezes, são crianças e adolescentes que levam a vida nos ombros, desviando os obstáculos, indicando os caminhos

    Quando Carol e Silvinha nasceram, era Marília quem tomava conta delas. Ela ainda lembra o dia em que Silvinha, com 11 meses de idade, segurou a mamadeira sozinha, pela primeira vez. "Achei tão engraçado o jeitinho dela...", resume. As irmãs cresceram e, agora, cercam Marília de cuidados. É que, há três anos, Marília de Almeida Oliveira, 16, perdeu a visão por causa de um glaucoma.

Foto do Jornal O POVO

    Ana Caroline, nove, e Sílvia Carla, sete, até estudam no mesmo local que Marília. Elas participam do projeto, desenvolvido pela Sociedade de Assistência aos Cegos, que visa à integração dos deficientes visuais com quem tem a visão perfeita - o Instituto dos Cegos do Ceará oferece aulas até a 4° série do ensino fundamental. Matriculadas naquela escola, as meninas também podem passar a tarde de olho na irmã mais velha. "Quando ela sai sozinha, fico com medo dela levar uma queda", justifica Carol.

    E Marília também se sente segura com as pequenas por perto, apesar de planejar um futuro mais independente. "Espero um dia ser telefonista e aprender a andar de bengala", diz. Até lá, não dispensa a(s) companhia(s): "Seguro no ombro da Carol e vou embora!".

    Se o destino fez o parentesco, ele também cuidou de estreitar o vínculo entre irmãos de sexo e idade diferentes. "Depois que ele ficou cego, a gente ficou mais amigo", ratifica Gardênia Maria Alves dos Santos, 18. "É confissão por cima de confissão... E ele sabe guardar segredo!", completa. As conversas vêm desde o tempo em que Gardênia tinha quatro anos e levava Francisco Evandro (hoje, com 14 anos) ao colégio. Os assuntos ocupavam a hora e meia que a dupla gastava do bairro Mucuripe à avenida Bezerra de Menezes. Percurso feito com dificuldades. "Tinha vezes que ele não queria entrar no ônibus, me chutava", relata Gardênia.

    Com o pai e a mãe trabalhando, foi mesmo a filha mais velha quem ficou com a responsabilidade de conduzir o irmão. Os primeiros problemas nesse inesperado percurso na vida foram superados. Gardênia, ainda hoje, dá conta da incumbência que recebeu na infância. "Tenho cuidado para ele não tropeçar. O que tiver na frente dele, sou eu quem aviso".

    A cumplicidade é tão grande entre os pares formados a partir da deficiência visual que os guias se tornam os olhos alheios. Uma parte do outro corpo difícil de se apartar. Eliomária Tavares da Silva, 20, ensaia os primeiros passos sem a irmã, Romária, 10. Em maio deste ano, aluna do Instituto dos Cegos do Ceará, ela fez o curso de orientação. Andou (quase) sozinha por aí - a professora ficava a uns metros de distância, acompanhando. Eliomária ficou animada com a façanha, só não arriscou a tentativa outra vez. "É porque me sinto segura com a Romária", alega, emendando: "Mas, ao mesmo tempo, tenho vergonha... Por que eu desse tamanho, né?!".

    Romária não reclama, aceitou a troca oferecida pela mãe. Quando tinha sete anos, ouviu a proposta de levar a irmã ao colégio: "Tu vai mais ela que eu pago tua passagem", disse a mãe. "Não tem nada difícil, já me acostumei", sintetiza Romária o trajeto de Messejana à Aldeota, quatro ônibus por dia.

    O caminho é ainda mais longo quando as duas vão aproveitar os poucos anos de vida que têm. A parada fica próxima ao quintal da juventude dos dias de hoje. "Adoro ir ao shopping!", empolga-se Eliomária. E ela programa uma voltinha sem a companhia da irmã caçula. "Minhas amigas dizem assim: `Mulher, por que tu não pega tua bengala e vai em frente?'. Eu quero andar sozinha. Tenho inveja quando vejo os meninos andando sozinhos...", solta.


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