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Jornal O POVO
Quinta-feira - 22-05-2003

Fortaleza - Ceará - Brasil
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vida & arte
A cegueira de todos nós


A comédia Vida de Cego traz uma trama simples e articulada, que cresce junto com a libido da personagem principal. Os protagonistas são deficientes visuais e fazem com o espetáculo um exercício de luta contra o preconceito.

Emmanuel Nogueira
Artitulista do Vida & Arte

      A cegueira sempre foi um tema inspirador para o teatro e literatura. No clássico grego, Édipo Rei, de Sófocles, lemos a história do governante Édipo, que cega seus olhos quando descobre, tardiamente, que havia casado e procriado com sua mãe, Jocasta. Agarrado ao poder, Édipo fechou-se para todos os indícios do seu pecado capital. Sua autoflagelação mais do que uma redenção individual é um ato de purificação coletiva. Édipo livra-se da cegueira interior e nega-se, como governador, a institucionalizar a barbárie para seu povo.
      José Saramago, por sua vez, escreveu um romance intitulado Ensaio sobre a cegueira, que pode ser lido como um farol na escuridão que empresta o novo milênio. Sem razão aparente, seus personagens vão ficando cegos, até que as trevas tomam conta de todos. Mesmo assim, os traços demasiadamente humano das personagens, como a vaidade, mesquinharia, ambição, preconceito, arrogância, continuam lá, enraizados, indeléveis, imperiosos, em cada um deles, confirmando a tese de que o inferno não são de outros.

Foto do Jornal O POVO
Cena de Vida de Cego: coragem e rebeldia contra a
cegueira endêmica

      Na noite da última terça-feira, no teatro do Centro Dragão do Mar, fui assistir a uma peça em que todos os atores eram cegos, ou se preferirem o eufemismo, eram deficientes visuais. O espetáculo Vida de cego é uma comédia, do Grupo de Teatro Ponto de Vista, dirigido por Ruth Queirós e montado pela Sociedade de Assistência aos Cegos, que volta próxima semana no Teatro do Sesc. Embora tenha elegido a comédia como tema, tem muito a ver com Sófocles e Saramago. A persistência da diretora e a coragem dos atores compõem um ato de rebeldia contra a cegueira endêmica, interior, que insiste em nos rodear,. Eles encontraram na arte teatral um pilar digno para vencer a imagem negativa que há em torno da figura do ceguinho.
      A peça é um exercício de luta contra o mais arraigado dos preconceitos. Prova que, para além da visão, há a vontade de fazer arte, que é, na essência, o desejo de estar/comunicar com o mundo. A partir do palco, um novo mundo se descortina para os atores, que enxergam, inventam, vivem, outras visa e personagens. Vêem um mundo que muitos olhos não vêem. Ao público, despido de qualquer pieguice ou culpa, resta a sensação de que os limites existem, mas podem ser ultrapassados, assim como parte de todos os preconceitos que temos com o universo dos cegos.

      Há seis anos que o Grupo Ponto de Vista vem realizando suas montagens sempre na linha da comédia e, praticamente, sem apoio nenhum. Vida de Cego é uma comédia é o primeiro espetáculo apresentado ao grande público. Conta a história de Rosinha Cassatodos (Roselane Pessoa) que, como Dona Baratinha, tem cabelos loiros e muito dinheiro na caixinha, mas quer a todo custo se casar. Pela Internet encontra três pretendentes: um americano (Júlio César), um cantor das multidões (Gerocilmo) e um árabe (Hortêncio Pessoa). Cada vez que Rosinha vê seu intento frustado, aparece o Caritó (José Alfredo), tentando-lhe provar que é melhor ficar solteira que casar.
      Para apimentar a história ainda mais, aparecem o empresário do cantor (Adailton), a mulher do americano (Maria de Fátima) e um gay afetado (Sérgio). Enfim, é uma trama simples e bem articulada, que vai crescendo a medida que a libido da ansiosa Rosinha vai sendo reprimida.
      Na peça, é claro que há limitações semelhantes as que são enfrentadas quando os cegos jogam bolas ou andam nas ruas. Mas nada que os impeçam de realizar esse feito teatral. Interpretações reveladoras como a de Júlio César, que vive o papel do americano, mostram que o trabalho tem futuro, se houver o mínimo de apoio público ou privado., que permanece invisível aos olhos de todos. Mesmo assim, a peça pode ser um bom momento para a cura daqueles que vendo não vêem quase nada.


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