Jornal O POVO
Quinta-feira - 07-03-2013
Fortaleza - Ceará - Brasil
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O mundo de outro jeito
"Eu sou muito feliz!", expressa Heldyeine, 21 anos, ao fim da entrevista. A afirmação e a resiliência da jovem cega, surda e muda desde o nascimento desconcertam as noções que temos de felicidade, beleza, mundo e da própria vida
Heldijane, a irmã do meio, nem tinha completado direito seis anos quando tia Marly a pegou no colo e lhe colocou um destino nas mãos: sempre que Heldijane sentisse fome, também alimentasse a caçula, Heldyeine (Heldy); igualmente, teria que administrar a sede, o calor, a infância, a juventude. Teria que poder com o sempre. “E, assim, vamos tomar banho juntas, sair juntas, brincar juntas...”. Há mais de 7.665 dias. |
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Esse caminho é narrado no livro Heldy, meu Nome (Hagnos) - lançado, em São Paulo, em dezembro de 2012. Heldy foi lesada por uma rubéola. Pobre e morando em Maracanaú (Região Metropolitana de Fortaleza), não encontrava um profissional que lhe amenizasse as deficiências. Um ano e meio depois das negações, ela se abrigou no conhecimento e na coragem de Marly, professora do Instituto Hélio Góes (Sociedade de Assistência aos Cegos). Marly foi a única pessoa que pegou o “bebê franzino e de pouca vitalidade” nos braços e decidiu fazer o esforço que pudesse para Heldy ser gente.
Resiliência
A comunicação foi estabelecida, contra cansaços e a dúvida do fracasso, com a Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) Tátil. A jovem surdocega precisa tocar as mãos do interlocutor. É pelo toque que sente a beleza e o amor, por exemplo. “Amar é cuidar, passar segurança. É o amor que a minha mãe passa pra mim e eu passo pra ela”, transmite, pelas mãos de Heldijane.
Mais do que pelas palavras (ou muito além delas), é pelos gestos que Heldy compreende o mundo. E, de alguma forma, tem uma compreensão maior do que os olhos podem ver. “Deus significa um homem muito bom, que dá vida e força às pessoas”, define, em meio à escuridão e ao silêncio.
Heldijane é quem interpreta as respostas de Heldy. Na infância, sentir o que o outro sente se fez um entendimento precoce sobre a vida. Com a saída do pai da família, a mãe necessitou trabalhar, “a mais velha tomava conta da casa e eu tomei a Heldy pra mim”. O que era carga, Heldijane inverteu em compreensão. “O tempo não era para mim, era nosso... Era pra gente brincar no quintal: ‘Vamos subir no pé de goiabeira, de graviola. Vamos ensinar para Heldy descobertas’”.
Juntas, tentam entender também a morte e o perdão. Foi “tão difícil explicar pra ela” quando o tio que lhe deu a festa de 15 anos morreu... É também complexo descobrir como Heldy, já maior de idade, reconheceu o pai na parada do ônibus apenas tocando no rosto que desaparecera quando ela tinha oito meses.
Heldy não é indiferente, fugiu do isolamento pelas mãos de Marly. Apesar da escuridão e do silêncio, Heldy existe. Ama, reza, gosta de maquiagem, achou São Paulo um lugar bonito, faz bijuterias, imagina escrever mais desta história “na minha faculdade, no tablet que tenho e recebeu uma adaptação”. E gesticula, serena: “Eu sou muito feliz! Muito alegre mesmo!”.
Ao contar de si, a jovem surdocega desconcerta o que pensamos ser ou não ser e nos aponta um modo de salvar o que se vive. É difícil compreender o mundo de Heldy porque nos prendemos às palavras; ignoramos gestos. Na verdade, sabemos muito pouco sobre (a força d)o que acreditamos. Desconhecemos as possibilidades de transformação que habitam em nós. Queremos o que não teremos e não valorizamos o que possuímos. Não agradecemos, quase nunca. Usamos uma coragem insuficiente para amar. Confiamos menos na humanidade. E Heldy nos mostra que o mundo pode ser de outro jeito.
SERVIÇO
Heldy, meu Nome – Rompendo as Barreiras da Surdocegueira
(Hagnos, 2012. 224 páginas) – de Ana Maria de Barros Silva, sobre os caminhos da surdocega cearense Heldyeine Soares.
Preço: R$ 22,90. Para comprá-lo: 8154.6472 (Jane).
Saiba mais
No livro Heldy, meu Nome, há uma referência à norte-americana Helen Keller (1880-1968); uma vida célebre pela superação que narra e pelo ativismo que contém. Helen ficou cega e surda aos 18 meses de idade e foi educada, a partir dos 7 anos, pela professora Anne Sullivan (1886-1936). Aprendeu o Alfabeto Manual de Surdos e o braile, além de francês e alemão, e se formou filósofa aos 24 anos. As aspas em destaque nesta página são trechos da biografia A História da minha Vida (José Olympio), um dos livros escritos por Helen Keller.
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