Jornal O POVO
Domingo - 26-10-1997
Fortaleza - Ceará - Brasil
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Os olhos não vêem, mas o coração sente
Estudantes da Faculdade de Medicina da UFC procuraram identificar as nuances da gravidez entre as deficientes visuais: como reagem, se comportam e convivem sob a relação da maternidade. O coração acompanha os passos que os olhos não podem ver. |
O que os olhos não vêem, o coração procura sentir - dizem as mães com deficiência visual. Elas apresentam lições para quem queira aprender, a partir de suas histórias de vida. Encaram com naturalidade e emoção a grandeza de cuidarem de seus filhos, sem necessariamente estabelecerem relação de dependência. São mães tanto quanto quem pode observar os passos do filho. A elas faltou apenas um sentido, plenamente substituível pelos demais, que a natureza ou o destino não lhes permitiu.
"Mãe deficiente visual - um desafio a ser vencido" foi o tema do trabalho acadêmico desenvolvido por um grupo de estudantes, da disciplina Psicologia Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em dez casos distintos, os alunos Rommel Prata Regadas, 21, Luís Eduardo Galvão, 19, e Leonardo Cavalcante, 19, procuraram evidenciar que a maternidade de mães com problemas visuais só cria transtornos alheios. Para elas próprias, chega a ser tão natural como assumir qualquer outra responsabilidade. Só que de maneira mais prazeirosa, mais grata para a própria personalidade.
A diferença fisiológica é nenhuma. Na relação comportamental, as mudanças são de caso para caso. "Somos iguais às outras. A gente cria nossa imaginação e pede algumas informações para saber como é o rosto da criança. Procuramos agir naturalmente" - diz Ivanise Sampaio Ferreira, 46, funcionária do Instituto dos Cegos do Ceará, mãe de Regina, 16, e Lívia, 3. O marido, Francisco Ferreira, 44, também é cego.
A pesquisa dos três estudantes procurou saber desde a infância e trabalho das deficientes visuais à situação social criada pelo casamento ou pela própria gravidez. A abordagem da discriminação não poderia escapar das linhas do trabalho. "A gente nem imaginava que um casal de deficientes visuais pudesse fazer de tudo dentro de casa" - surpreendeu-se Luís Eduardo Galvão. Pior para quem para quem é cego é ser tratado como alguém "diferente".
Durante a gestação do filho, os alunos avaliaram que as mães fazem de tudo para provar que não existe um problema. A gravidez é uma conseqüência do dia a dia. Costumam trabalhar até a proximidade do parto, continuam as tarefas de casa e evitam se passar por dependentes. "Elas até se testam, para ver se são capazes de assumir aquele filho" - diz Rommel Regadas. A atenção dispensada ao filho é tal e qual à de quem pode acompanhá-lo à distância. Quem não vê tem um sentido a menos que outras pessoas. Mas são quatro percepções muito mais habilidosas e aguçadas.
Sem diferença na gravidez
Os médicos também não apontam quaisquer diferenças no tratamento de pacientes que possuam problemas físicos ou sensitivos. "O acompanhamento durante a gestação requer cuidados realmente especiais. Mas os exames e a abordagem na gravidez de uma deficiente visual são exatamente iguais" - afirma o obstetra Elpídio Nogueira. Ele já fez o parto de uma paciente cega, em atendimento no Hospital Gonzaguinha da Barra do Ceará.
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O médico admite o fator psicológico da cegueira como intrínseco às atitudes da mãe. As reações que possam alterar o comportamento ocorrem mais em nível interior. "Ele pode criar uma certa angústia, de precisar saber como ele está e não ter uma idéia visual da situação" - explica Nogueira. Essa preocupação é repassada pelo médico durante o pré-natal, para que evite ao máximo o auto-constrangimento. "Explicamos que ela terá o apoio social da família e da equipe médica". |
Instituto tem programa para orientação
Francisca Soares Silva, 27, ganhou o apelido de Sandra ainda na infância - por motivo não sabido. Perdeu a visão aos 7 anos, por causa de uma varíola, quando ainda morava em Ipaumirim, a 420 Km da Capital. Veio para Fortaleza em 1990 para trabalhar. Conheceu o professor de inglês Luis Carlos (também cego), casou e hoje é mãe de Igor Mateus, de 2 anos.
Mantém com o filho uma relação de amor à distância, comum a qualquer mãe dos dias atuais - que precisa trabalhar o dia todo e deixar a criança com empregada ou alguém da família. "Ele já entende e leva nossa mão a TV, quando quer mostrar alguma coisa na TV".
O Instituto dos Cegos do Ceará desenvolve cursos, dentro do Programa AVD, sobre as Atividades da Vida Diária. A disciplina é obrigatória entre os programas de Educação especial. A disciplina é obrigatória entre os programas de educação especial. A proposta repassa conhecimentos da rotina doméstica. "Procurandos dar apoio de todas as formas, nos cuidados com a casa, a limentação dos filhos e no pré-natal" - explica a assistente social Socorro Alencar. A ultrassonografia é um dos atos mais solenes durante a gravidez da deficiente visual. A imagem é relatada em cada detalhe para a nova mãe. Com muito mais expectativa.
Família de pais cegos tem vida normal dentro do lar
Lívia tem três anos e saúde de ferro. Corre pela casa o tempo todo, mas Ivanise Sampaio segue seus passos a todo momento. Procura não perder um lance. Determinação de mãe é assim: não escolhe hora nem situação para ver a cria. Se os olhos de Ivanise não podem acompanhar a filha, por não lhe possibilitarem a visão desde nascença, os demais sentidos a socorrem.
Ivanise já é calejada no papel de mãe. Além de Lívia, teve pleno êxito na criação de Regina, hoje com 16 anos. "Existe a diferença de você não estar vendo. Precisamos mostrar aos filhos que somos capazes. Eu procurei sempre estabelecer uma relação de confiança" - diz, explicando o desafio assumido por duas vezes. No apartamento, ela banha Lívia, penteia os cabelos da filha, cozinha, passa roupa, trabalha fora e não se sente tolhida em momento algum. Quando procuram trabalho, as empregadas domésticas de Ivanise até pensam que irão assumir o papel de guia dentro de casa. Enganam-se logo em seguida. As duas filhas talvez não sintam tanta diferença com a deficiência visual da mãe e do pai, Francisco Ferreira, porque sempre conviveram com a situação. Reciprocamente, as meninas sempre entenderam as minúcias da relação. Em vez de indicarem algo para a visão, costumavam sempre direcionar o tato para determinados objetos. Lívia ainda põe a mão de Ivanise na imagem de uma televisão, para que a mãe possa "ver". Os amigos do edifício ou da escola são curiosos. "Perguntam por que a mãe tem o olho fechado". É assim porque não pode ver - responde. É isso e tão somente isso. |
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