Símbolo do Jornal O POVO
Jornal O POVO
Domingo - 21-03-1999

Fortaleza - Ceará - Brasil
http://www.opovo.com.br
Em nome da vida


Ana Naddaf
Da Editoria do Dela's

A luta de milhares de pessoas que correm contra o tempo e o preconceito. Na fila de espera por um coração, um rim ou uma córnea, elas dependem da boa vontade de doadores.

"Tome, Doutor, esta tesoura, e... corte Minha singularíssima pessoa. Que importa a mim que a bicharia roa Todo o meu coração, depois da morte?!" (Augusto dos Anjos)

Foto do Jornal O POVO

A decisão de doar não depende mais apenas de você. Depende de todos os seus familiares. Com um decreto presidencial, de 04 fevereiro de 1997, todo brasileiro seria um doador presumível caso em seus documentos não tivesse registrada posição contrária até o prazo de dois anos. Como a lei 9434 só entrou em vigor 45 dias após a sua publicação, o prazo final teria sido na sexta-feira, dia 19 de março de 1999. Teria sido. A lei só foi regulamentada pelo Decreto 2268, de junho do mesmo ano. E só entrou em vigor, realmente, em janeiro de 98. Dois anos de lei, dois anos de polêmica.

Polêmica tanta que o governo acabou baixando uma medida provisória para garantir que nenhum órgão seria doado sem a autorização prévia da família do morto. Portanto, não está mais em suas mãos, mas nas mãos de todos que o cercam, a decisão de doar.

"Só se sabe o que é doar quando o seu coração sente e os seus olhos enxergam de perto. Aquilo que está distante dos olhos e, principalmente, do coração não se enxerga", diz Ângela Maria Araújo Vasconcelos, pouco antes de apresentar seu irmão que, há duas semanas, vive com um dos seus rins. Sílvio Araújo Vasconcelos faz parte de uma estatística paralela: a de conseguir um rim de doador vivo, no caso o de sua irmã. Mais de 300 pessoas esperam um doador cadáver de rim, na fila única da Central de Transplantes do Ceará. Outros também estão na mesma fila. São cerca de 500 pacientes esperando por córneas e oito cardíacos estão aguardando por um transplante. Por enquanto, no Ceará, só se fazem transplantes de córneas, rins e coração. Mas, pulmões, pâncreas, fígado e ossos também podem ser doados.

Mesmo que muitos estejam a espera de um doador, o índice de transplantes de órgãos no Estado cresceu em relação ao ano passado. Neste ano, já foram feitos 26 transplantes de córneas, 12 renais e quatro cardíacos. Comparando com os resultados de 98, apenas quatro transplantes cardíacos foram feitos durante todo o ano. O crescimento também ocorreu por todo o país. Em um levantamento feito pela Associação Brasileira de Transplante de Órgão, o número de transplantes cresceu uma média de 12,5%, de 98 em relação ao ano anterior.

Os números de transplantes aumentam, mas as filas de espera engrossam. A diferença está na relação entre demanda e oferta de transplantes. Tomando o ano passado como exemplo, apenas 20% da demanda de pacientes com problemas renais foram atendidos. No caso do coração, dos 1800 pacientes que esperavam por doadores, apenas 85 foram beneficiados.

Segundo o ex-coordenador da Central de Transplantes do Ceará, Raimundo Messias de Araújo Filho, a questão ainda está em aperfeiçoar campanhas para educar a população em relação a importância da doação de órgãos. "Precisamos também trabalhar os profissionais de saúde e implementar os centros transplantadores", acrescenta.

São registradas todo o ano, no Brasil, cerca de 69 mortes encefálicas por milhão de habitantes. No Brasil, isso representa apenas 3,5 doadores. Caso fosse na Espanha, esse número pularia para 40 possíveis doadores. "Houve um impacto negativo da lei, a abordagem com as famílias acabou tornando-se mais difícil. A medida provisória mudando a lei, o trabalho das centrais de transplante e o trabalho educativo tem mudado esse quadro. O resultado acontece a longo prazo", explica a enfermeira, Fátima Lima, uma das responsáveis pela abordagem e captação de órgãos da Central de Transplantes do Ceará.

Entre porcentagens e perspectivas, estão aqueles que já enfrentaram a prática, nem tão matemática assim, da doação. São os nomes e sobrenomes entre os números. A espera de quem quer voltar a enxergar, o fim do traumático tratamento de hemodiálise e o recomeçar uma vida de coração novo são algumas das histórias que o Dela's escutou para mostrar que existe mais a contar de olhos, corações e rins do que as estatísticas falam.

Para comunicar uma doação ou cadastrar-se para um trasplante é preciso entrar em contato com a Central de Transplantes de Órgãos do Ceará pelos telefones: 488 2122 e 800 1520

Irmãos de sangue

Na folhinha estava a data marcada. Dia dois de março, terça-feira. O relógio marcava 8h30. Além dos ponteiros, que cada vez se apressavam mais, batia o coração de Ângela Maria Araújo Vasconcelos. Seu medo: a anestesia. Nunca havia tomado uma antes. Sua coragem: o irmão, na sala ao lado, que esperava o sucesso da sua cirurgia para recomeçar uma nova vida.

Para entender a cena acima, seria preciso voltarmos no tempo. Há cerca de sete anos, Sílvio Araújo Vasconcelos começou a sentir os primeiros sintomas daquilo que resultou em uma insuficiência renal crônica. Ao procurar os médicos, o diagnóstico não poderia ser pior. Os dois rins de Sílvio já estavam comprometidos.

Começava, então, uma luta que ainda deixa marcas. "É difícil contar o que passei durante seis anos e quatro meses", começa a contar Sílvio. Enquanto isso, mostra, meio que envergonhado, um dos braços, cheio de edemas e caroços. Resultado de todos estes anos de hemodiálise. Ao lado, a irmã acompanha o relato.

Sílvio continua: "Isso é a marca visível. Tinha câimbras, tonturas, ânsia de vômito e até meu corpo mudou de cor. Só quem fez hemodiálise, sabe o que é passar por ela". Durante todo este tempo, seu nome ficou na lista de espera por um doador cadáver. Repetia os exames a cada seis meses, na esperança de conseguir um transplante. "Desisti por um tempo. Aquilo me cansava. Só voltei a repetir os exames quando surgiu a lei", conta. Seus olhos não conseguem ser vistos, pois ficam atrás da máscara. Mas, sua voz denuncia o tom da lembrança.

Enquanto nenhum doador aparecia, Sílvio continuava com as sessões de hemodiálise. Religiosamente, três vezes por semana, sentava em uma cadeira e esperava o serviço da máquina que lhe tomava, muitas vezes, mais de quatro horas do seu dia.

Mas, seu silêncio incomodou alguém bem perto. Sua irmã mais nova resolveu doar um rim. "O Sílvio nunca pediu para alguém da família fazer os exames para saber da possibilidade de encontrar um doador compatível. Foi o meu marido que me alertou para isso. Um dia ele me disse que se pudesse doaria um rim para Sílvio, só não fazia os exames pois já teve hepatite. Isso me despertou. Eu fiquei pensando que se tenho dois rins e se tenho condições de doar, então por que não? E ainda mais se a pessoa para quem ia doar era meu próprio irmão", relembra Ângela.

"Ela teve muita coragem. Para fazer uma operação como esta precisa ter muita coragem. E para encontrar essa pessoa...', interrompe Sílvio. Ele tem razão. Nestes últimos tempos, dos transplantes feitos no Hospital das Clínicas, Sílvio era um dos dois transplantados que tiveram doador vivo.

Depois da decisão de Ângela, foram nove meses de exames. "Eu poderia ter desistido na época dos exames, eram demorados e alguns doíam muito", conta Ângela, que vinha, de bicicleta, da sua casa no Jóquei Clube até o Hospital das Clínicas, em Rodolfo Teófilo. O caminho foi tortuoso, mas não desviou a irmã.

"Depois de tudo isso, lá estava eu sentada na mesa de operação. Quando vi tanta gente na sala, comecei a chorar. Parei um pouco, respirei fundo e deitei. Sabia que na sala ao lado estava meu irmão", vai contando aos poucos, como querendo recompor cada ato da cena.

Não consegue. Depois que Ângela respirou bem fundo, só acordou na sala de pós-operatório. "Quando acordei senti a sensação de que tinha cumprido uma missão e que alguém tinha me abençoado. Não me arrependo de nada. Faria tudo de novo. Só de pensar que um pedacinho de mim deu vida para outra pessoa...", desabafa Ângela. "E eu acordei de um pesadelo. Agora sei o sentido do nascer de novo", diz o irmão.

Sílvio ainda está hospitalizado, o que deixa sua filha Tarciane, de nove anos, em uma espera ansiosa. "Todo dia ela pergunta para a minha cunhada se o pai vai estar na festa de aniversário dela", conta Ângela. A família inteira espera que sim.

A esperar pelo retorno às letras

Os olhos, acostumados com as letras miúdas dos livros raros, agora não têm direção fixa. Ficam distantes a olhar um infinito que não se define mais. Desde que foi aposentada da chefia da Biblioteca do Tribunal de Justiça, Edite Nunes Oliveira está afastada dos livros. A distância não é uma decisão sua, mas de seus olhos.

Há cinco anos, Dona Edite vem passando por várias cirurgias nas córneas. Primeiro, devido a um glaucoma, depois, para um tratamento de catarata. Mesmo assim, a visão continua a lhe faltar. "Meus dias têm sido nublados", descreve. Outras tentativas foram feitas neste espaço de tempo. "Venho fazendo tratamento com laser, mas só o olho esquerdo ganhou uma pequena luz. Como as minhas chances de voltar a enxergar eram muito pequenas, o médico resolveu me inscrever no Banco dos Olhos", diz.

Feitos todos os exames, só resta a espera por um possível doador. Em sua ficha, no
Instituto dos Cegos, estão todos os telefones da família. De cada um dos quatro filhos. Além dos números de casa e do celular. "Tenho ficado a espera de um aviso, de uma ligação. Desde dezembro quase não saio de casa, só na esperança de um telefonema", conta.

Prestes a completar 69 anos, a aposentada está aprendendo tudo de novo. Do esperar a leitura dos jornais, feita pelo marido, até a de dar um jeitinho para fazer um paparico aos filhos preparando-lhes o copo de mingau. "Perder a visão de repente é muito difícil. É como aprender a viver de novo. Sinto falta das pequenas coisas que fazia", desabafa.

A cada tocar do telefone, espera-se ouvir a possibilidade de um transplante. "Eu sei que a espera é dolorosa, mas a gente se apega na fé. Se eu conseguir acho que ficarei rezando para essa pessoa a minha vida toda. Uma pessoa que morre e dá uma parte sua, está vivendo ali com a gente", acrescenta.

Dona Edite é um número entre as 500 pessoas que também estão na fila de espera por um doador de córneas. Sua voz continua mansa e sempre está a nos prover de mais uma lição. "Minha filha, apesar de tudo, eu posso te dizer uma coisa: eu sou feliz. Eu tenho um marido muito bom que é meus olhos, meus braços, é tudo para mim. A gente perde a visão, mas tem outras compensações na vida", diz, como a enxergar aquilo que os olhos não vêem.

Um ano de coração novo

Trezentos e sessenta e cinco dias podem parecer pouco para boa parte das pessoas. Não para Zilma Gomes da Silva. Um só dia fez toda a diferença em seus 34 anos. Amanhã, ela estará comemorando esse dia. Cada sucessão de segundos deste 22 de março será acompanhada pela sucessão das batidas de seu coração, que um dia pertenceu a outrem. Pertencia a um garoto, de 12 anos, que morreu há exato um ano.

"Eu tinha passado quarenta dias seguidos no hospital, estava de volta em casa há pelo menos duas semanas. Foi quando a equipe do hospital ligou dizendo da possibilidade de um coração. A mãe ainda não tinha decidido sobre a doação, mas era possível. A resposta poderia ser positiva. Do jeito que eu estava, eu saí. Não pensava em nada, só que daria certo desta vez", lembra.

O velho coração estava certo. Zilma foi transplantada. E o novo coração teria que começar a aprender aquilo que o outro já se acostumara. "Toda noite eu faço um balanço de tudo que passei. E, olha, que não foi pouca coisa...', começa a contar. Ao ter seu terceiro filho, o primeiro de um segundo casamento de sete anos, Zilma começou a ter sintomas do que depois foi diagnosticado de miocardiopatia dilatada peri-parto.

Do nascimento de Luís até a notícia que precisaria de um transplante foram apenas seis meses. "Eu sabia que minha vida iria mudar, mas nem tanto. Quando entrei pela primeira vez no hospital, não parei mais. Começou com três dias de internação, depois cinco dias, depois foi aumentando. Eram dois meses, depois três... Meu filho era bem pequeno na época. Muitas vezes, quando eu chegava do hospital, ele nem me reconhecia", conta. Foi um ano e seis meses de espera na lista, tempo em que via o crescimento do pequeno Luís apenas pelo porta-retrato. "Eu estava praticamente me despedindo dele".

Angústia e esperança se revezavam. "Eu dizia: que seja agora, que seja hoje, que seja amanhã, que não demore muito, que dê tempo", relembra as preces, que viravam uma espécie de ladainha. A cantinela fora ouvida. O transplante acontecera. Depois de vinte dias hospitalizada, já de coração novo, o que era angústia transformou-se em ansiedade.

"Eu só queria saber como seria daquele momento em diante. Queria recomeçar. Mas quando a gente passa por isso, a vida não pode ser mais a mesma. Quando eu fui para casa, meu marido me deu uma outra notícia. Ele havia pulado o barco. E agora lá estava eu, de novo, com uma nova vida. Sozinha com os três filhos", relembra. Aquilo que era dor, ela enlutou. "Só o meu coraçãozinho novo poderia aguentar o que precisei passar. Mas, se você tem saúde, não apenas toca o barco, mas o levanta se for preciso", encorajou-se.

Depois da separação, Zilma foi morar com o pai, levando os três filhos: Luís, que já completara dois anos, Tiago, de 14 anos, e Ticiane, de 12. Acompanhada sempre pelo caçula, Zilma foi reaprender as pequenas coisas da vida. "Pegar o Luís no colo, andar de bicicleta, sentir o meu coração, vê os meus filhos pela manhã. Tudo parecia a primeira vez. E era. Pelo menos para o meu coração".

Outro mês de março passa pela vida de Zilma. E, agora, mais um novo ciclo (de 365 dias) começa. "Eu fico imaginando muito como era a criança que me doou o coração. Primeiro porque eu tenho filhos, praticamente, da mesma idade. Depois, porque ele sempre fará parte da minha vida. Eu tenho muita vontade de falar com a mãe dele sobre isso, mas respeito o lado dela. Sei o que para mim é felicidade, deve ser tristeza para ela. Mas, quero que ela saiba que desejo muito dividir essa alegria", desabafa e olha para Luís. Mãe sabe o que diz.

A árdua batalha pela doação

O telefone toca e a Central acaba de ser notificada sobre uma morte cerebral (ou morte encefálica). Os dados para uma primeira triagem passam às mãos de uma das enfermeiras da equipe. Chega-se ao hospital, verifica-se o diagnóstico. A família, normalmente, já foi comunicada. Chega a parte mais difícil: o pedido da doação e a explicação burocrática sobre o ato.

A rotina do trabalho não é das mais fáceis. A missão menos ainda. É uma corrida contra o tempo em relação aos órgãos (a família tem menos de 24 horas para decidir sobre a doação) e o tempo para a família absorver a perda do ente, que ainda tem o coração batendo em uma sala próxima. "É um parâmetro difícil de decisão. Precisamos escolher o melhor momento para explicarmos que é o nosso trabalho fazer o pedido, sem que a família se sinta agredida por estarmos pedindo em um momento de dor", explica Fátima Lima, uma das nove enfermeiras que trabalham na Central de Transplantes do Ceará. Mesmo que o trâmite da doação torne-se burocrático, as enfermeiras confessam que não dá para deixar a emoção de lado:

"Eu sempre digo para as famílias, na hora da abordagem, que é um momento muito difícil para a gente também. Nós não somos insensíveis à dor daquela família na hora de abordar e pedir a doação. Uma das táticas é deixar que a família absorva a idéia da morte. Damos um tempo para essa família. E o tempo depende de cada caso. Tem família que já tem consciência da doação e, assim que se dá o diagnóstico, ela já se manifesta como doadora. Aquela família que não tem conhecimento da doação ou não consegue absorver a idéia da dor, você tem que dar mais tempo. Teve o caso de uma mãe que a filha teve um aneurisma. Ela chegou no hospital e ficou sabendo que a filha tinha entrado em morte encefálica. Em seguida, essa mãe foi abordada por uma pessoa do hospital. Eu disse para mim mesma `essa mãe vai dizer não'. Dito e feito. A resposta foi um não definitivo. Ela estava tão desesperada, tão revoltada, que naquele momento ela perdeu todos os parâmetros. Ela negou o pedido de doação porque não entendia o que estava acontecendo. Como ela vai entender que vai ter que doar se ela não entendeu a perda da filha?'
Fátima Lima - enfermeira, trabalha há seis anos com captação de órgãos e transplantes.

"Uma das histórias que mais me comoveu foi a de um menino de oito anos, que morreu em um desastre de jet ski, no ano passado. O pai se sentiu muito culpado e a família estava tão transtornada, que não tinha nem condições para ir ao hospital. Foi quando me chamaram até a casa deles. A primeira pessoa que falou comigo foi o tio. Eles ainda tinham muitas dúvidas sobre a doação. O tio me disse que eles eram muito espiritualistas, que teriam esperanças até o último suspiro e que esperariam o coração parar sozinho. Expliquei que aquele último suspiro que eles esperavam já havia sido dado, porque a respiração que eles viam era provocada por um respirador. Devido à morte encefálica, todo o corpo era mantido através das máquinas e das drogas. Depois disso, ele subiu as escadas da casa. Desceram, então, o pai e a mãe. Ela chorava muito. Ele perdia a voz. Mas, mesmo assim, com toda a dor, eles resolveram fazer a doação. Infelizmente, na época, não tínhamos nenhum receptor compatível para o coração. Mas, as válvulas cardíacas, os dois rins e as córneas foram doadas.'
Corina A. Viana - enfermeira, com mestrado em Enfermagem Clínico-Cirúrgia, pela Universidade Federal do Ceará. Trabalha há três anos com captação de órgãos e transplantes.


Volta página principal Maiores informações:
Volta página anterior envie Mail para Webmaster da SAC