SOCIEDADE DE ASSISTÊNCIA AOS CEGOS
60 ANOS
Ensinando a Ver o Mundo
Blanchard Girão
Páginas: 175-182
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CAPÍTULO V
MERGULHO NA
ALMA DE UM CEGO
Como é mesmo o mundo interior
de uma pessoa cega? Como ela "vê", do negror imutável de seus dias, em que
não há distinção de luzes e cores, este outro lado da vida, onde a quase totalidade é
possuidora da visão?
Tentando vasculhar o universo anímico desta criatura ferida pela
fatalidade, buscamos encontrar resposta para a reação desse homem no contato direto com
os outros, sem distinguir a fisionomia do interlocutor, a sua cor, a sua altura, nada do
tipo com o qual dialoga. Quais seriam as manifestações psíquicas de quem não pode
usufruir a beleza da luminosidade colorida da natureza?
Diante dessa curiosidade intrigante, fomos colocar essa
indagação para alguém que lida com os sentimentos mais íntimos dessas pessoas, indo
fundo no seu interior, ao seu eu que acreditávamos ser diferente daqueles que têm
olhos a luzir perante todas as coisas.
Nesse trabalho há onze anos, a psicóloga Lizabeth Cléa Brito
de Sousa fala com carinho dessas criaturas com quem lida todos os dias, assinalando que o
cego "é uma pessoa dócil, de convivência tranqüila", que se sociabiliza com
facilidade. "Os temperamentos variam, como é óbvio. Isto é da essência da
natureza humana. Do mesmo modo, vamos encontrar no nosso convívio pessoas mais
acomodadas, outras mais irascíveis e inquietas, como em qualquer outro conglomerado
humano", enfatiza a Dra. Beth.
Ela distingue duas situações bem diferenciadas, constatando que
os "cegos não oferecem geralmente quaisquer dificuldade de adaptação. Porém os
que perderam a visão depois de certa idade, às vezes ainda na infância, quando não na
idade madura ou na velhice, apresentam um quadro de precária situação psicológica,
face ao agudo sofrimento decorrente da nova e cruel situação a que se viram atirados,
uns lentamente, outros de modo traumático e repentino".
A psicóloga do Instituto dos Cegos garante que não é uma
tarefa tão árdua, pois "o cego torna-se receptivo a tudo aquilo que se faz em seu
proveito, aceitando bem as propostas que lhe são lançadas, embora nem sempre
executadas".
São observações interessantes colhidas dessa conversa que
julgamos básica para poder escrever sobre a comunidade cega. "Os cegos de nascença,
no currículo escolar, freqüentam turmas próprias e sem demora começam a dominar os
meios essenciais ao enfrentamento da sua realidade pessoal, a partir da capacitação para
orientar-se sozinho nas ruas, o que conseguem bem pelo aguçamento do tato, da audição,
do olfato, de que se utilizam com grande destreza. Também nas salas de aula depressa
aprendem os conhecimentos elementares, com o rápido domínio da escrita e leitura em
Braille, caminho indispensável a todo o aprendizado", comenta a professora Lizabeth.
E acrescenta: "Já com o portador da chamada cegueira adquirida o problema torna-se
mais complexo. Primeiro porque ainda guarda uma memória visual da sua condição
precedente. Aquilo tem uma força residual muito forte no seu comportamento, gerando
costumeiramente uma terrível sensação de fracasso, de inutilidade."
Para superar essa grave situação, a Dra. Lizabeth ressalta a
importância da família e dos amigos em contribuírem com afeto e compreensão para a
retomada da auto-estima.
"O maior sofrimento desse cego refere-se à perda da
credibilidade, às vezes no próprio seio da sua família, que entende erroneamente haver
perdido aquele membro capaz de ajudar no contexto doméstico, quer financeiramente, quer
pelo aspecto moral de impor a sua autoridade. O portador da cegueira também sente
desaparecerem os amigos, que se afastam pela natural discrepância de interesses entre um
homem são e um deficiente visual. Conheço casos de algumas famílias que chegam a
admitir que a cegueira conduz à demência. Positivamente, uma total insensatez. O homem
atingido por essa importante perda física e psíquica reclama, sim, muita solidariedade,
muito afeto, muita compreensão e ajuda."
OS SONHOS
No contato diário com os mais
diversificados portadores de cegueira, quer os de caráter congênito quer a adquirida, a
psicóloga, por insistência nossa, faz algumas revelações sobre a delicada alma dessas
criaturas.
"Como toda e qualquer pessoa fala a Dra. Lizabeth
os cegos sonham ao dormir. Tenho ouvido deles alguns depoimentos sobre esses
sonhos, revelações do seu inconsciente enquanto dominados pelo sono. Uma aluna nossa,
que cegou por volta dos dez anos de idade, disse-me que costuma sonhar enxergando (aquele
resquício da memória virtual que preserva). Ao despertar, sofre a dolorosa frustração
de se deparar com a dura realidade da sua cegueira. Já o cego de nascença, nos seus
sonhos, percebe formas, coisas assim como sombras, sem contudo poder defini-las. Nada
disso, as tristezas, essas dissipações, contudo, lhes arruínam a alma. São, como posso
garantir, pessoas geralmente alegres, de bem com a vida."
BONS DE BOLA
Se são ótimos alunos em sala de
aula, os deficientes são também bons nos esportes. Estão atentos ao que se passa no
País do futebol, porém não ficam apenas na condição de espectadores. Participam
também e com invulgar entusiasmo. Tornaram-se atrações as competições esportivas na quadra do Instituto, particularmente nos grandes dias festivos. Formavam-se diversas equipes que se enfrentavam em vibrantes disputas de futebol de salão. Como o cego joga futebol? Há adaptações da bola e das condições da quadra. A bola, por exemplo, era nos primeiros tempos dotada de um guizo. Depois alguém teve a idéia de revestir a popular "vítima" do jogo de tampinhas de refrigerantes. Guiados pelos ruídos eles partiam céleres para o domínio do balão esférico e tinham extraordinário senso de objetividade nos chutes a gol. O piso da quadra também era de um tipo de cerâmica própria que facilitava o deslocamento dos atletas sem os riscos de queda e encontrões mais ríspidos. |
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Natação - o esporte preferido dos cegos
Mas o esporte preferido do
deficiente visual é a natação. O Instituto mantém convênio com uma academia de
ginástica, que cede a sua piscina, aos sábados, para aulas e disputas entre os
deficientes. O número de participantes é tão elevado que se processa uma divisão por
grupos, cada qual com direito a 15 minutos de exercício dentro da água.
Os deficientes são igualmente provados nas corridas de média e
curta distância. Inclusive, em olimpíadas especiais para deficientes em geral, há o
registro de vários campeões entre os destituídos da visão.
Alegres e saudáveis, eles encontram no esporte uma forma de
integração social e, ao mesmo tempo, uma maneira de cuidar da sua condição física e
psicológica.
Confirma-se na prática esportiva a opinião daqueles que lidam
mais de perto com eles no dia-a-dia da escola: são indivíduos de fácil relacionamento,
sem tristezas e depressões insuperáveis, nada que lhes arruíne a alma. São pessoas de
bem com a vida, repete-se.
LIVRES DA HIPOCRISIA
As professoras de um modo geral
e a psicóloga em particular possuem opinião consensual a respeito desses alunos. Nas
aulas têm comportamento muito bom, convivência tranqüila com colegas e mestres, com as
exceções de praxe. Segundo essas devotadas assistentes, uma das características do
deficiente visual reside na espontaneidade, com a cegueira reduzindo a exacerbação do eu.
Isto é, do egoísmo, que, por sua vez, neutraliza a autocensura, o fingimento, a
hipocrisia, essa máscara tão própria nos indivíduos comuns no relacionamento com os
seus semelhantes. O cego não finge, a alma não tem como fingir. Seus olhos opacos se
opõem à hipocrisia.
Todas essas observações põem em destaque a necessidade do
deficiente visual ser acompanhado em sua diferença por uma equipe profissional preparada
para essa tarefa.
Sem dúvida nenhuma, o processo integrativo passa por esse
trabalho que organismos como o Instituto dos Cegos Dr. Hélio Góes estão aptos a
proporcionar.
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